Flora se deitou, entediada, e seus longos cachos cor de fogo escorreram pela borda da cama. Estava com dezessete anos, seu rosto era fino, as orelhas pontudas, e a pele lisa e macia apresentava um tom cinza-esverdeado. Estava cansada da monotonia daquele lugar. Tudo era sempre tão calmo e silencioso, que, quando seu pequeno brinco de pérola caiu no chão, o som agudo do baque pareceu soar como um grande estampido.
Com um longo suspiro, Flora se levantou para recolhê- lo e o prendeu de volta na pontinha de sua longa orelha. Por algum motivo inexplicável, ele sempre caía, mas Flora insistia em usá-lo todos os dias. Não que gostasse tanto assim do brinco, mas ele formava a combinação ideal com seu medalhão de ouro. Este, sim, era especial. Possuía-o desde pequena e não o tirava do pescoço. Por algum motivo, ele fazia Flora sentir que a vida ainda lhe reservava uma grande aventura.
Flora foi arrancada de seus devaneios quando ouviu uma agitação abaixo de sua janela. Tudo o que mais desejava era um pouco de emoção, algo que trouxesse algum barulho àquele lugar, mas jamais acreditou que isso aconteceria tão cedo. O povo sollaris, sempre muito tranquilo, raramente gritava ou corria. Mesmo morando na principal cidade da grande Ilha de Ashteria, o som mais comum que Flora ouvia era o das folhas das árvores se debatendo com o soprar de uma brisa.
A calmaria cotidiana dava a Flora uma angustiante sensação de inércia. Por isso, ela vivia inventando coisas novas para fazer, e não conseguia entender porque ninguém a acompanhava em suas ideias. Às vezes, sentia-se uma estranha em seu próprio lar. Quem dera fosse tudo sempre como na festa da colheita, que acontecia no equinócio de outono. Nesta noite todos riam, cantavam e dançavam. Mas a festa invariavelmente chegava ao fim, então tudo voltava a ser sossegado como sempre.
Mas a época de colheita ainda estava longe, e, até aquele momento, aquele era um dia comum, em que nada acontecia. Até ter início a agitação lá fora, incomum e sedutora.
Curiosa como só ela, Flora abriu a janela de madeira e pôs a cabeça para fora, para espiar o que acontecia. E, ao contrário da atmosfera lenta e tranquila com a qual estava acostumada a conviver, se deparou com uma rua cheia de sollaris que corriam por todos os lados. Muitos não sabiam como proceder, outros gritavam instruções.
– O que está havendo? – Flora gritou ao avistar Latham, o mais velho de seus muitos irmãos, correndo em direção à praia.
– Flora, não saia de casa! A ilha está sendo invadida! – Gritou de volta, alarmado, e continuou a correr.
Invadida? Seria possível? Mas aquela era uma ilha mágica! Flora aprendera desde criança que Ashteria, também conhecida como “A Ilha Onde Tudo Parece Ser o Que Realmente É”, era totalmente secreta, não podia ser invadida! Sequer podia ser encontrada! Infelizmente, Flora nunca compreendera que o isolamento era a menor das magias presentes naquele lugar. Mas logo isso mudaria, e ela aprenderia o que significava “parecer ser o que realmente é”.
Flora decidiu que precisaria rever todos os conceitos que já tinha aprendido até então, assim que viu a embarcação que aportava na praia. Na verdade, não se tratava de um navio de guerra, mas de um pequeno barco a remo. Não parecia representar grande perigo, mas era o suficiente para mudar a forma de pensar de toda uma população. Ansiando por novidades, Flora correu à praia para ver de perto os recém- chegados.
Um grupo de sollaris armados aguardava a chegada do pequeno bote, enquanto uma multidão se escondia atrás deles, prontos para defender suas terras, mas não a ponto de desejarem um embate. Apesar do receio, alguns ajudaram os estranhos visitantes a atracarem. Eram dois humanos bem vestidos, um velho e um moço. O primeiro, baixo e magro, possuía cabelo curto e uma longa barba triangular. Não era feio, mas uma grave queimadura deformava parte de seu rosto.
O mais jovem era muito mais alto e forte, e aparentava ser o líder. O cabelo, comprido e muito claro, contrastava com a pele morena. Apesar de belo, possuía uma aura sombria, que era amplificada pela coloração escarlate de seus olhos. Andava pela praia com determinação e arrancou de Flora um calafrio ao expor as mãos manchadas de sangue, quando falou:
– Povo da Ilha Oscilante, queremos paz. Viemos apenas para buscar um dos nossos que há muito foi tirado de nós, e temos motivos para acreditar que esteja aqui. – Em seguida passou o olhar por todos os que ali estavam, fixando-o em cada um deles por alguns instantes.
Os sollaris formavam um povo esguio, de estatura mediana e aparência ágil. Todos possuíam pele verde- acinzentada, cabelo ruivo e orelhas pontudas, o que os tornava figuras pitorescas quando somado às suas roupas caprichosamente coloridas em tons fortes, como o vermelho vivo e o azul marinho. A tranqüilidade era uma constante e aquele era um povo feliz. Mas aquele homem jamais saberia disso. Após sua chegada repentina, os únicos sentimentos que podia ver estampados nas faces sollaris eram preocupação e medo. Em todas as faces, exceto uma.
– Flora, – apontou o dedo indicador manchado de sangue para ela e chamou, ao encontrar seu olhar curioso – vamos embora, viemos te buscar!
Ao ouvir as palavras de tal homem, a curiosidade de Flora se esvaiu, dando lugar ao medo. Todas as cabeças se voltaram para ela. Pela primeira vez em sua vida, compartilhou do mesmo sentimento de seus conterrâneos sollaris: a insegurança frente ao desconhecido. Ficou aterrorizada. Aquele estranho que surgira de repente sabia seu nome... e queria levá-la embora! O que significaria aquilo tudo? Por um momento irracional, Flora temeu que toda a ilha ao seu redor desaparecesse e ela nunca mais voltasse a ver sua querida mãe e seus irmãos.
Ela não sabia o que aquilo significava, mas de repente sentiu como se o chão tivesse desaparecido sob seus pés. Deu dois passos para trás enquanto sentia seu coração disparar, e foi tomada por um amargo sentimento de culpa por ter desejado que acontecesse algo diferente na ilha. Sem palavras e sem compreender ao certo o que fazia, Flora deu as costas e saiu correndo. Amedrontada, fugiu para onde se sentia segura. Fugiu para casa.
O passar dos minutos tornou o quarto sufocante. A porta e a janela estavam fechadas, enquanto Flora torcia para que, quando saísse de lá, descobrisse que os dois homens tinham ido embora, ou melhor, que eles nunca estiveram ali. Assim ela poderia retornar à sua rotina normal de reclamar da calmaria do lugar.
Flora perdeu totalmente a noção do tempo. Ela apenas sabia que o sol já ameaçava se pôr atrás do Mar Eterno por causa dos feixes da luz alaranjada do poente, que invadiam o quarto pelas frestas da janela fechada. Foi nesse momento que ouviu uma batida à porta. Relutante, abriu-a, e por ali entrou sua mãe.
– Querida, não chore... – disse a mãe ao entrar, abraçando a filha.
– Mãe, o que eles querem? Como chegaram até aqui? Como sabem meu nome?!
– Minha filha, aconteça o que acontecer, nunca se esqueça que eu te amo. – A mãe olhou para Flora, muito séria. – Eu gostaria de ter te contado de uma outra maneira, mas... eu não esperava que isso acontecesse agora...
– Contar o quê?!
– Querida... você sempre esteve e sempre estará no meu coração, junto com todos os seus irmãos... Mas você... Bom, você não é exatamente igual a eles. Você não nasceu em Ashteria.
– Mas você me disse que nunca esteve fora da ilha!
A mãe desviou o olhar. Ela olhou para o lado, depois, para o teto. Por último, olhou para o chão. Era a primeira vez que Flora a via sem palavras e exibindo uma ruga de preocupação na testa. As peças se encaixaram na mente de Flora, no exato momento em que sua mãe suspirou profundamente e anunciou:
– Eu nunca estive fora da ilha.
– Você... não é minha mãe?
– Claro que sou sua mãe! Apesar de que você... não nasceu do meu ventre – gemeu a mulher. – Você nasceu dentre os humanos do continente.
Flora se levantou e andou em círculos por alguns minutos. Sua vida inteira era uma mentira! A mãe tentou abraçá-la, mas ela se desvencilhou com violência e continuou a caminhar de um lado para o outro, a mente a mil, formulando incontáveis perguntas. Teve a sensação de que alguém acabara de arrancar seu coração, um misto de tristeza, raiva e o sentimento de não pertencer a lugar algum.
– O que aconteceu com a minha mãe e o meu pai de verdade?! – Disse por fim. – Por que... Por que eles me deixaram?
A mãe se sentou e fechou os olhos com amargura. Não conhecia os pais biológicos de sua filha, e nunca procurara saber deles. Nada daquilo importara até aquele momento, afinal, ela própria era a mãe verdadeira de Flora. E Flora era sua filha amada, sua única menina.
– E esses homens? Vieram para me buscar?
– Sim, filha. Mas eu já disse a eles que não deixaremos você ir contra sua vontade.
Flora suspirou e sentou ao lado da mãe, dando-lhe as mãos. As duas permaneceram juntas por um longo tempo, suficiente para que o sol terminasse sua descida e a lua cheia finalmente despontasse no céu.
– Dylis, eu agradeço muito por você ter me acolhido e por tudo o que fez por mim até hoje. Mas é hora de eu ir em busca das respostas às minhas perguntas.
Flora sempre a chamara de mãe, mas agora se sentia desconfortável e julgava mais adequado chamá-la pelo nome. Estava decidida a descobrir sua origem, então se levantou e saiu do quarto. Ela não viu as lágrimas que rolaram com abundância pelo rosto de sua mãe, ao ser deixada sozinha.
O salão sempre fora iluminado e confortável, mas tornou-se subitamente frio com a presença dos dois humanos. Ali eles aguardavam, em pé, por notícias sobre Flora. Ao redor, cinco dos irmãos sollaris dela os observavam desconfiados, sendo liderados por Latham. Estavam armados com lanças e prontos para reagir ao menor sinal de afronta. Esperavam por Dylis, e foi uma surpresa quando Flora adentrou o local.
– O que querem de mim? – Ela foi logo perguntando aos dois forasteiros.
O homem de cruéis olhos vermelhos e mãos manchadas de sangue se aproximou e caminhou em torno de Flora, analisando-a dos pés à cabeça. Sem aviso, ele chegou bem perto, pegou o medalhão que ela trazia pendurado no pescoço e ergueu à altura dos olhos, para que pudesse inspecioná-lo melhor. Ela o viu percorrer os olhos pelos entalhes delicados, desviando o olhar hora ou outra para observá-la.
– Humpf... Você é diferente do que eu imaginava, mas é você mesma! Vamos embora! – Disse o homem, e passou a caminhar em direção à saída do salão.
Ao perceber que Flora não sairia do lugar, o humano mais velho interferiu:
– Dimitri, acredito que a jovem precise de um esclarecimento antes de partirmos.
Dimitri se voltou novamente para ela e colocou as mãos ensanguentadas na cintura. Olhou-a por um momento, como se pensasse na melhor forma de explicar a situação. Mas paciência não era seu forte, e delicadeza também não.
– Você é a herdeira do trono de Hynneldor. Seus pais morreram e seu irmão assumiu, mas a magia dele não é forte o suficiente para proteger o reino dos inimigos vindos de Vulcannus, e o povo está morrendo de fome. Resumindo, eles precisam de você.
– Meus pais morreram? – Ela sentiu a esperança se esvair. Jamais poderia fazer perguntas a sua mãe e a seu pai. Viveria para sempre sem saber o real motivo de não a terem criado. – Vocês os conheciam?
– Olha, nós vamos ter muito tempo para papo furado no caminho de volta. Mas temos que ir logo, senão a passagem vai se fechar e ficaremos presos nessa ilha!
Flora se sentia cansada e desiludida. Foram muitas informações novas em um único dia, e ela precisaria de tempo para digeri-las. Com a impossibilidade de encontrar seus verdadeiros pais, ela estava se inclinando a desistir de acompanhar aqueles dois homens. Sabia que bastava um sinal seu para que seus cinco irmãos os colocassem para fora, e estava prestes a tomar essa decisão. Mas, para sua surpresa, Latham abaixou sua lança e falou com ela:
– Olha, Flora, eu não sei como dizer isso, mas... talvez você devesse ir.
Latham era muito mais velho do que Flora. De repente, ela se deu conta de que ele deveria se lembrar do dia em que ela chegara à ilha. Sentiu-se traída. Não apenas Latham, mas todos ao seu redor esconderam-lhe a verdade por muitos anos.
– Por que você nunca me contou? Sempre confiei em você! – Oh, Flora, não chore... Você sempre foi audaciosa, sem dúvidas buscaria respostas fora de Ashteria. Por que eu haveria de contar, se isso só a levaria para longe?
Flora tardaria a compreender a totalidade daquilo que seu irmão lhe dizia. Por hora, a única conclusão a que chegara era de que nada justificaria uma mentira. Além disso, a resposta de Latham não apenas era insatisfatória, como também contradizia-se.
– Depois de mentir por tanto tempo, você diz que é melhor eu ir embora?
– Eu não menti. Depois de anos sem tocar no assunto, simplesmente me esqueci da sua origem incomum. – Latham meneou a cabeça, chateado. – Mas você sempre quis uma vida diferente, e finalmente veio o chamado. Vá conhecer o mundo além do Mar Eterno, mas saiba que esperaremos ansiosamente pelo seu regresso.
– Mas... não vou encontrar respostas...
– Princesa, eu conheci seus pais. – Disse o humano mais velho, aproximando-se. – Meu nome é Nathair Tredbach. Eu era muito próximo a eles, e hoje sou um dos conselheiros de seu irmão, Fausto. – Nathair segurou as mãos de Flora e olhou em seus olhos enquanto conversava com ela. – Fausto é mais velho do que você. Ele deve se lembrar do incidente em que você foi levada. Seu irmão poderá te dar algumas respostas.
“Seu irmão poderá te dar algumas respostas.” Aquelas palavras penetraram a mente de Flora de maneira tão intensa, que seus pensamentos se embaralharam e se confundiram. Ela estava prestes a se recusar a partir com os dois, mas já não se lembrava mais do motivo.
– Venha conosco, Flora – disse Nathair –, muitos anseiam pela sua chegada. Seu irmão já está resignado a acreditar que você morreu. Ah, ele vai ficar tão feliz em te ver! Você vai conhecer suas origens e retornar ao lugar ao qual pertence!
Mesmo depois que Nathair soltou as mãos de Flora, ela continuou a sentir o calor da esperança queimando em seu peito. O mundo inteiro parecia mais colorido e interessante, e ela chegou a uma decisão. Mandou chamar os irmãos que estavam ausentes, e reuniu todos no salão. Eram oito, no total, e ela beijou-os um por um. Todos choravam ao se despedir da única irmã, exceto Latham. Ao abraçá-la, ele lhe segredou:
– Não tema os acasos do caminho. Siga seu coração, e ele lhe proverá a força necessária.
E assim teve início a aventura.
Com um longo suspiro, Flora se levantou para recolhê- lo e o prendeu de volta na pontinha de sua longa orelha. Por algum motivo inexplicável, ele sempre caía, mas Flora insistia em usá-lo todos os dias. Não que gostasse tanto assim do brinco, mas ele formava a combinação ideal com seu medalhão de ouro. Este, sim, era especial. Possuía-o desde pequena e não o tirava do pescoço. Por algum motivo, ele fazia Flora sentir que a vida ainda lhe reservava uma grande aventura.
Flora foi arrancada de seus devaneios quando ouviu uma agitação abaixo de sua janela. Tudo o que mais desejava era um pouco de emoção, algo que trouxesse algum barulho àquele lugar, mas jamais acreditou que isso aconteceria tão cedo. O povo sollaris, sempre muito tranquilo, raramente gritava ou corria. Mesmo morando na principal cidade da grande Ilha de Ashteria, o som mais comum que Flora ouvia era o das folhas das árvores se debatendo com o soprar de uma brisa.
A calmaria cotidiana dava a Flora uma angustiante sensação de inércia. Por isso, ela vivia inventando coisas novas para fazer, e não conseguia entender porque ninguém a acompanhava em suas ideias. Às vezes, sentia-se uma estranha em seu próprio lar. Quem dera fosse tudo sempre como na festa da colheita, que acontecia no equinócio de outono. Nesta noite todos riam, cantavam e dançavam. Mas a festa invariavelmente chegava ao fim, então tudo voltava a ser sossegado como sempre.
Mas a época de colheita ainda estava longe, e, até aquele momento, aquele era um dia comum, em que nada acontecia. Até ter início a agitação lá fora, incomum e sedutora.
Curiosa como só ela, Flora abriu a janela de madeira e pôs a cabeça para fora, para espiar o que acontecia. E, ao contrário da atmosfera lenta e tranquila com a qual estava acostumada a conviver, se deparou com uma rua cheia de sollaris que corriam por todos os lados. Muitos não sabiam como proceder, outros gritavam instruções.
– O que está havendo? – Flora gritou ao avistar Latham, o mais velho de seus muitos irmãos, correndo em direção à praia.
– Flora, não saia de casa! A ilha está sendo invadida! – Gritou de volta, alarmado, e continuou a correr.
Invadida? Seria possível? Mas aquela era uma ilha mágica! Flora aprendera desde criança que Ashteria, também conhecida como “A Ilha Onde Tudo Parece Ser o Que Realmente É”, era totalmente secreta, não podia ser invadida! Sequer podia ser encontrada! Infelizmente, Flora nunca compreendera que o isolamento era a menor das magias presentes naquele lugar. Mas logo isso mudaria, e ela aprenderia o que significava “parecer ser o que realmente é”.
Flora decidiu que precisaria rever todos os conceitos que já tinha aprendido até então, assim que viu a embarcação que aportava na praia. Na verdade, não se tratava de um navio de guerra, mas de um pequeno barco a remo. Não parecia representar grande perigo, mas era o suficiente para mudar a forma de pensar de toda uma população. Ansiando por novidades, Flora correu à praia para ver de perto os recém- chegados.
Um grupo de sollaris armados aguardava a chegada do pequeno bote, enquanto uma multidão se escondia atrás deles, prontos para defender suas terras, mas não a ponto de desejarem um embate. Apesar do receio, alguns ajudaram os estranhos visitantes a atracarem. Eram dois humanos bem vestidos, um velho e um moço. O primeiro, baixo e magro, possuía cabelo curto e uma longa barba triangular. Não era feio, mas uma grave queimadura deformava parte de seu rosto.
O mais jovem era muito mais alto e forte, e aparentava ser o líder. O cabelo, comprido e muito claro, contrastava com a pele morena. Apesar de belo, possuía uma aura sombria, que era amplificada pela coloração escarlate de seus olhos. Andava pela praia com determinação e arrancou de Flora um calafrio ao expor as mãos manchadas de sangue, quando falou:
– Povo da Ilha Oscilante, queremos paz. Viemos apenas para buscar um dos nossos que há muito foi tirado de nós, e temos motivos para acreditar que esteja aqui. – Em seguida passou o olhar por todos os que ali estavam, fixando-o em cada um deles por alguns instantes.
Os sollaris formavam um povo esguio, de estatura mediana e aparência ágil. Todos possuíam pele verde- acinzentada, cabelo ruivo e orelhas pontudas, o que os tornava figuras pitorescas quando somado às suas roupas caprichosamente coloridas em tons fortes, como o vermelho vivo e o azul marinho. A tranqüilidade era uma constante e aquele era um povo feliz. Mas aquele homem jamais saberia disso. Após sua chegada repentina, os únicos sentimentos que podia ver estampados nas faces sollaris eram preocupação e medo. Em todas as faces, exceto uma.
– Flora, – apontou o dedo indicador manchado de sangue para ela e chamou, ao encontrar seu olhar curioso – vamos embora, viemos te buscar!
Ao ouvir as palavras de tal homem, a curiosidade de Flora se esvaiu, dando lugar ao medo. Todas as cabeças se voltaram para ela. Pela primeira vez em sua vida, compartilhou do mesmo sentimento de seus conterrâneos sollaris: a insegurança frente ao desconhecido. Ficou aterrorizada. Aquele estranho que surgira de repente sabia seu nome... e queria levá-la embora! O que significaria aquilo tudo? Por um momento irracional, Flora temeu que toda a ilha ao seu redor desaparecesse e ela nunca mais voltasse a ver sua querida mãe e seus irmãos.
Ela não sabia o que aquilo significava, mas de repente sentiu como se o chão tivesse desaparecido sob seus pés. Deu dois passos para trás enquanto sentia seu coração disparar, e foi tomada por um amargo sentimento de culpa por ter desejado que acontecesse algo diferente na ilha. Sem palavras e sem compreender ao certo o que fazia, Flora deu as costas e saiu correndo. Amedrontada, fugiu para onde se sentia segura. Fugiu para casa.
O passar dos minutos tornou o quarto sufocante. A porta e a janela estavam fechadas, enquanto Flora torcia para que, quando saísse de lá, descobrisse que os dois homens tinham ido embora, ou melhor, que eles nunca estiveram ali. Assim ela poderia retornar à sua rotina normal de reclamar da calmaria do lugar.
Flora perdeu totalmente a noção do tempo. Ela apenas sabia que o sol já ameaçava se pôr atrás do Mar Eterno por causa dos feixes da luz alaranjada do poente, que invadiam o quarto pelas frestas da janela fechada. Foi nesse momento que ouviu uma batida à porta. Relutante, abriu-a, e por ali entrou sua mãe.
– Querida, não chore... – disse a mãe ao entrar, abraçando a filha.
– Mãe, o que eles querem? Como chegaram até aqui? Como sabem meu nome?!
– Minha filha, aconteça o que acontecer, nunca se esqueça que eu te amo. – A mãe olhou para Flora, muito séria. – Eu gostaria de ter te contado de uma outra maneira, mas... eu não esperava que isso acontecesse agora...
– Contar o quê?!
– Querida... você sempre esteve e sempre estará no meu coração, junto com todos os seus irmãos... Mas você... Bom, você não é exatamente igual a eles. Você não nasceu em Ashteria.
– Mas você me disse que nunca esteve fora da ilha!
A mãe desviou o olhar. Ela olhou para o lado, depois, para o teto. Por último, olhou para o chão. Era a primeira vez que Flora a via sem palavras e exibindo uma ruga de preocupação na testa. As peças se encaixaram na mente de Flora, no exato momento em que sua mãe suspirou profundamente e anunciou:
– Eu nunca estive fora da ilha.
– Você... não é minha mãe?
– Claro que sou sua mãe! Apesar de que você... não nasceu do meu ventre – gemeu a mulher. – Você nasceu dentre os humanos do continente.
Flora se levantou e andou em círculos por alguns minutos. Sua vida inteira era uma mentira! A mãe tentou abraçá-la, mas ela se desvencilhou com violência e continuou a caminhar de um lado para o outro, a mente a mil, formulando incontáveis perguntas. Teve a sensação de que alguém acabara de arrancar seu coração, um misto de tristeza, raiva e o sentimento de não pertencer a lugar algum.
– O que aconteceu com a minha mãe e o meu pai de verdade?! – Disse por fim. – Por que... Por que eles me deixaram?
A mãe se sentou e fechou os olhos com amargura. Não conhecia os pais biológicos de sua filha, e nunca procurara saber deles. Nada daquilo importara até aquele momento, afinal, ela própria era a mãe verdadeira de Flora. E Flora era sua filha amada, sua única menina.
– E esses homens? Vieram para me buscar?
– Sim, filha. Mas eu já disse a eles que não deixaremos você ir contra sua vontade.
Flora suspirou e sentou ao lado da mãe, dando-lhe as mãos. As duas permaneceram juntas por um longo tempo, suficiente para que o sol terminasse sua descida e a lua cheia finalmente despontasse no céu.
– Dylis, eu agradeço muito por você ter me acolhido e por tudo o que fez por mim até hoje. Mas é hora de eu ir em busca das respostas às minhas perguntas.
Flora sempre a chamara de mãe, mas agora se sentia desconfortável e julgava mais adequado chamá-la pelo nome. Estava decidida a descobrir sua origem, então se levantou e saiu do quarto. Ela não viu as lágrimas que rolaram com abundância pelo rosto de sua mãe, ao ser deixada sozinha.
O salão sempre fora iluminado e confortável, mas tornou-se subitamente frio com a presença dos dois humanos. Ali eles aguardavam, em pé, por notícias sobre Flora. Ao redor, cinco dos irmãos sollaris dela os observavam desconfiados, sendo liderados por Latham. Estavam armados com lanças e prontos para reagir ao menor sinal de afronta. Esperavam por Dylis, e foi uma surpresa quando Flora adentrou o local.
– O que querem de mim? – Ela foi logo perguntando aos dois forasteiros.
O homem de cruéis olhos vermelhos e mãos manchadas de sangue se aproximou e caminhou em torno de Flora, analisando-a dos pés à cabeça. Sem aviso, ele chegou bem perto, pegou o medalhão que ela trazia pendurado no pescoço e ergueu à altura dos olhos, para que pudesse inspecioná-lo melhor. Ela o viu percorrer os olhos pelos entalhes delicados, desviando o olhar hora ou outra para observá-la.
– Humpf... Você é diferente do que eu imaginava, mas é você mesma! Vamos embora! – Disse o homem, e passou a caminhar em direção à saída do salão.
Ao perceber que Flora não sairia do lugar, o humano mais velho interferiu:
– Dimitri, acredito que a jovem precise de um esclarecimento antes de partirmos.
Dimitri se voltou novamente para ela e colocou as mãos ensanguentadas na cintura. Olhou-a por um momento, como se pensasse na melhor forma de explicar a situação. Mas paciência não era seu forte, e delicadeza também não.
– Você é a herdeira do trono de Hynneldor. Seus pais morreram e seu irmão assumiu, mas a magia dele não é forte o suficiente para proteger o reino dos inimigos vindos de Vulcannus, e o povo está morrendo de fome. Resumindo, eles precisam de você.
– Meus pais morreram? – Ela sentiu a esperança se esvair. Jamais poderia fazer perguntas a sua mãe e a seu pai. Viveria para sempre sem saber o real motivo de não a terem criado. – Vocês os conheciam?
– Olha, nós vamos ter muito tempo para papo furado no caminho de volta. Mas temos que ir logo, senão a passagem vai se fechar e ficaremos presos nessa ilha!
Flora se sentia cansada e desiludida. Foram muitas informações novas em um único dia, e ela precisaria de tempo para digeri-las. Com a impossibilidade de encontrar seus verdadeiros pais, ela estava se inclinando a desistir de acompanhar aqueles dois homens. Sabia que bastava um sinal seu para que seus cinco irmãos os colocassem para fora, e estava prestes a tomar essa decisão. Mas, para sua surpresa, Latham abaixou sua lança e falou com ela:
– Olha, Flora, eu não sei como dizer isso, mas... talvez você devesse ir.
Latham era muito mais velho do que Flora. De repente, ela se deu conta de que ele deveria se lembrar do dia em que ela chegara à ilha. Sentiu-se traída. Não apenas Latham, mas todos ao seu redor esconderam-lhe a verdade por muitos anos.
– Por que você nunca me contou? Sempre confiei em você! – Oh, Flora, não chore... Você sempre foi audaciosa, sem dúvidas buscaria respostas fora de Ashteria. Por que eu haveria de contar, se isso só a levaria para longe?
Flora tardaria a compreender a totalidade daquilo que seu irmão lhe dizia. Por hora, a única conclusão a que chegara era de que nada justificaria uma mentira. Além disso, a resposta de Latham não apenas era insatisfatória, como também contradizia-se.
– Depois de mentir por tanto tempo, você diz que é melhor eu ir embora?
– Eu não menti. Depois de anos sem tocar no assunto, simplesmente me esqueci da sua origem incomum. – Latham meneou a cabeça, chateado. – Mas você sempre quis uma vida diferente, e finalmente veio o chamado. Vá conhecer o mundo além do Mar Eterno, mas saiba que esperaremos ansiosamente pelo seu regresso.
– Mas... não vou encontrar respostas...
– Princesa, eu conheci seus pais. – Disse o humano mais velho, aproximando-se. – Meu nome é Nathair Tredbach. Eu era muito próximo a eles, e hoje sou um dos conselheiros de seu irmão, Fausto. – Nathair segurou as mãos de Flora e olhou em seus olhos enquanto conversava com ela. – Fausto é mais velho do que você. Ele deve se lembrar do incidente em que você foi levada. Seu irmão poderá te dar algumas respostas.
“Seu irmão poderá te dar algumas respostas.” Aquelas palavras penetraram a mente de Flora de maneira tão intensa, que seus pensamentos se embaralharam e se confundiram. Ela estava prestes a se recusar a partir com os dois, mas já não se lembrava mais do motivo.
– Venha conosco, Flora – disse Nathair –, muitos anseiam pela sua chegada. Seu irmão já está resignado a acreditar que você morreu. Ah, ele vai ficar tão feliz em te ver! Você vai conhecer suas origens e retornar ao lugar ao qual pertence!
Mesmo depois que Nathair soltou as mãos de Flora, ela continuou a sentir o calor da esperança queimando em seu peito. O mundo inteiro parecia mais colorido e interessante, e ela chegou a uma decisão. Mandou chamar os irmãos que estavam ausentes, e reuniu todos no salão. Eram oito, no total, e ela beijou-os um por um. Todos choravam ao se despedir da única irmã, exceto Latham. Ao abraçá-la, ele lhe segredou:
– Não tema os acasos do caminho. Siga seu coração, e ele lhe proverá a força necessária.
E assim teve início a aventura.