Flora atravessou inúmeros corredores escuros da masmorra, até que, ao fim de um lance de escada, a luz da lua minguante a cegou momentaneamente. Estava fora do calabouço, em um salão iluminado do castelo. Ali, tudo o que encontrou foi morte e destruição. Por onde quer que passasse, via corpos inertes, tanto dos guardas do castelo quanto do exército inimigo, o rico mobiliário do castelo transformado em várias grandes fogueiras, e o assoalho coberto de cinzas.
Ao tentar retornar por onde viera, ela viu seu caminho barrado por uma intensa batalha que se desenrolava entre os atacantes que haviam invadido pela masmorra e os poucos defensores que tentavam se reorganizar após o ataque surpresa. Impedida de prosseguir, esgueirou-se pelos salões adjacentes por um longo tempo, até que finalmente alcançou uma entrada para o grande Salão dos Quadros.
Estava pronta para adentrá-lo, quando ouviu vozes. Então recuou, se espremeu no corredor lateral onde estava e se esforçou para ouvir e tentar descobrir quem estava lá dentro, mas ela não conhecia a maioria das vozes que ali se projetavam.
– Alteza, é inútil! Precisamos nos render, ou estaremos condenados! Brodderick Carnell já nos derrotou, a Sala do Trono está repleta de seus soldados. O próximo passo será riscar Amitié do mapa!
– Mas aonde nossa rendição nos levará? De um jeito ou de outro, ele nos matará a todos!
– O que ele realmente deseja é resistência! O único propósito dessa guerra é satisfazer seus caprichos de glória em campo de batalha, e não podemos mais lhe dar esse prazer!
– Calados, todos. – Flora reconheceu a voz de Fausto Valaskes. – Minha esposa já foi levada?
– Sim, Vossa Alteza. Ela conseguiu escapar com seus filhos. Estão se dirigindo à Fortaleza do Gelo, nas Grandes Montanhas.
De onde estava, Flora conseguia ver o vitrais das portas que levavam a uma grande sacada e davam vista à guerra que se desenrolava. As defesas foram ineficazes e a cidade ardia, em inúmeros focos de incêndio que iluminavam a noite. Os poucos guerreiros remanescentes de Hynneldor caíam, um a um, enquanto os simples moradores da cidade eram presos a correntes de ferro e levados, em fila, para servirem como escravos.
– Senhores, este castelo resguarda o último Santuário do Céu. – Fausto voltou a falar. – Por mais que eu saiba que nossa resistência será ínfima, nós precisamos nos arriscar. Brodderick Carnell jamais poupará o santuário, e toda a esperança de Hynneldor depende disso. E é por isso que eu repito: esse santuário só será profanado após a minha morte. Vocês estão comigo?
Flora ouviu inúmeras espadas serem desembainhadas e várias vozes, em uníssono, bradarem um grito de aprovação. No mesmo instante, duas portas duplas, uma em cada extremidade do salão, foram escancaradas ao mesmo tempo. Por uma delas, entrou um batalhão de soldados de Hynneldor. Pela outra, irrompeu um grande número de soldados de Vulcannus.
Homens armados preencheram o salão, e logo começaram a se digladiar. Mas um homem, em especial, chamou mais a atenção de Flora. Brodderick Carnell era alto, forte, usava uma armadura negra imponente e bradava ordens e palavras de incentivo a seus comandados. Mas nada disso realmente importava. O que atraía o olhar de Flora era a cor de sua pele, escarlate, como Flora nunca vira antes.
Por um momento, ela lembrou de sua vida na Ilha de Ashteria. Os sollaris com quem convivera possuíam orelhas pontudas e pele esverdeada. Que saudade! Se Flora queria voltar a ver sua família algum dia, sabia que o primeiro passo seria sobreviver àquela guerra. Mas o homem de pele vermelha era forte, com certeza não era humano e parecia não ter medo da morte.
Um enorme barulho às suas costas arrancou Flora de seus devaneios. Ela olhou para trás a tempo de ver parte do teto ceder, quando o Furioso derrubou uma das vigas de sustentação ao tentar passar por um corredor mais estreito do que ele. Como um animal, passou a correr com as mãos no chão, na direção de Flora, deixando para trás um rastro de destruição.
Sem pensar, Flora invadiu o Salão dos Quadros, permeando os inúmeros guerreiros que se combatiam mutuamente. Ninguém deu atenção à menina que cruzava o salão em disparada, esquivando-se da batalha e buscando, desesperadamente, um lugar para se abrigar. Mas, quando o Furioso surgiu, todos pareceram prender a respiração ao vê- lo. Ele parou abruptamente na entrada do salão, escancarou a bocarra e soltou um longo e grave rugido:
– Matar Valaskes! – E se arremessou em direção a Flora.
– PARE! – Gritou Brodderick Carnell, e o Furioso obedeceu prontamente, parando a poucos centímetros dela.
Brodderick analisou a situação calmamente, estranhando o fato de o Furioso não estar visando o príncipe Fausto. Ele observou todos os presentes e deu um sorriso de escárnio. Flora e Fausto trocaram um olhar significativo, e um alarme soou na cabeça do príncipe quando seu inimigo declarou, triunfante:
– Dois Valaskes de uma só vez? Não poderia ser melhor...
– PROTEJAM A PRINCESA! – Fausto gritou, desesperado.
Tudo aconteceu ao mesmo tempo. Os guardas vieram em socorro, liderados por um valente soldado com espada e escudo. O Furioso atacou com ambas as mãos, atingindo o escudo e partindo-o ao meio, enquanto Flora correu, escondendo-se atrás do grupo de soldados que se deslocavam para protegê-la. Aproveitando a distração, Brodderick Carnell fechou os punhos em torno da bainha de uma espada que não existia, e de suas mãos irrompeu o fogo mágico que se transformou em uma espada sólida e afiada. Então atravessou o salão em um segundo e investiu contra Fausto.
Quando a espada de fogo de Brodderick se chocou contra a espada de metal do príncipe de Hynneldor, um grande estouro se fez, espalhando fagulhas por todo o salão. Os olhos de Fausto lacrimejaram de dor e muitos dos quadros pendurados na parede lateral arderam em chamas. Fausto foi forçado a recuar sob os ataques constantes e poderosos de seu adversário, e, à distância, avistou os guardas que tentavam proteger sua irmã, mas que caíam às dezenas.
Flora voltou a correr, percebendo a inferioridade das forças de Hynneldor. Em poucos minutos, sua defesa fora resumida a um amontoado de figuras agonizantes, e o Furioso continuava avançando, suado, ensanguentado, enquanto derrubava quem quer que estivesse em seu caminho.
– Matar Valaskes.
Quando não sabia mais para onde fugir, Flora abriu uma das portas e saiu para a sacada. Apoiada no parapeito, sentiu o vento frio da noite e viu que a queda até o chão daria uma longa distância. O Furioso se aproximou lentamente, até que a encobriu com sua enorme sombra, e levantou uma das mãos, para dar-lhe o golpe derradeiro. Ofegante, Flora fechou os olhos com força e esperou pelo seu destino, mas nada lhe aconteceu. Quando voltou a abri-los, Dimitri estava dependurado às costas do monstro, com todos os dentes à mostra, enquanto o estrangulava com a corrente que uma vez fora utilizada para unir suas duas espadas gêmeas.
O Furioso se debateu e correu, na tentativa de se livrar do sufocamento, mas o príncipe de Datillion era ágil e determinado. Então, avançou de costas para a parede, para colidir com ela. Dimitri soltou um urro, e por pouco não afrouxou a corrente. O rosto do Furioso estava quase tão vermelho quanto o de Brodderick Carnell, e suas forças começaram a se esvair.
Dimitri fechou a corrente, fincando a adaga nos elos das extremidades, e, antes que o monstro desfalecesse, empurrou-o sacada abaixo. Ele caiu por muitos metros, até atingir o portão de estacas de bronze do pátio do castelo, e seu coração foi trespassado por uma das estacas.
Já muito debilitado, Dimitri sangrava e tinha ossos quebrados. Apoiava-se em Flora quando, juntos, retornaram ao Salão dos Quadros, apenas para encontrar Fausto já derrotado. Dois soldados inimigos seguravam o príncipe de Hynneldor pelos braços, e o jogaram no chão com violência. Ao tentar se levantar, Brodderick Carnell lhe meteu um chute nas costas, que o fez cair novamente e cuspir sangue. Fausto, já sem forças para lutar, apoiou-se no chão e, lentamente, ergueu-se. Apenas para tomar outro chute.
Ao seu redor, dezenas de guerreiros haviam sucumbido, e outros tantos, caídos, apenas aguardavam o encontro com a morte. Apesar de tudo, Fausto estava decidido a morrer em pé, desafiando o inimigo até o fim. Brodderick gargalhava, sentindo prazer com a situação.
– Ora, ora... princesa, ainda está aqui? – Caçoou Brodderick. – Devo informar que de nada serviu toda a sua luta. Você só sobreviveu para assistir à morte de seu irmão. Você, leve-o para fora! – Ordenou a um de seus comandados.
Em instantes, todas as portas foram abertas, e Fausto foi arrastado para a grande sacada. Flora sentia-se impotente diante da situação: seu irmão, forte e audaz, era agora arrastado como se fosse um boneco nas mãos de seus algozes. O que haveria ela de fazer? Com Dimitri debilitado e Nathair tendo-a traído, estava completamente sozinha. Não sabia lutar e não conhecia seus inimigos. Assistir à humilhação do príncipe era uma tortura, e ela desejava, de todo coração, poder afugentar toda aquela tropa e fazer com que a guerra desaparecesse.
Lá embaixo, alguns poucos soldados do reino ainda lutavam, enquanto os moradores tentavam fugir da cidade, para não serem levados a Vulcannus como escravos. Eram todos iluminados pelo brilho quente de grande parte das casas, que eram consumidas pelo fogo.
– Vejam todos! Este será o fim da linhagem real de Hynneldor! – Brodderick projetou sua voz, no intuito de alcançar todos aqueles que ainda estavam em Amitié. Desejava que todos testemunhassem a execução. – Primeiro matarei o príncipe regente, que foi responsável pela decadência deste reino. Em seguida, será a vez da princesa Flora, a princesa perdida, que retornou apenas para presenciar o fim de Hynneldor.
Os soldados de Vulcannus que estavam na sacada forçaram Fausto a se ajoelhar e a curvar seu pescoço. Brodderick Carnel se deleitava com as circunstâncias, e arrancava risadas de escárnio de seus comandados, a cada novo chute que desferia no príncipe derrotado. Não se preocupou em oferecer-lhe uma morte honrada, pelo contrário. Para Brodderick, a derrota era desprezível, digna de degradação.
A cidade inteira parou para assistir, e o som de batalha deu lugar a uma confusa gritaria. As palavras de Brodderick ecoaram por toda Amitié, sendo modificadas à medida que se distanciavam. E o que era “ele vai matar o príncipe e a princesa Flora, que retornou” se tornou apenas “a princesa Flora retornou”.
Após apreciar a inglória do príncipe durante um bom tempo, Brodderick empunhou mais uma vez sua espada mágica. Era chegado o momento de dar o golpe final. Inconscientemente, Flora deu um passo para frente. Dimitri tentou impedi-la, mas ela se desvencilhou dele e pôs-se a caminhar em direção a seu inimigo.
– Pare! – Disse ela.
Todos imediatamente se viraram para ela, inclusive Fausto. O príncipe não demonstrava medo da morte, mas trazia estampado em seu olhar a decepção em saber que Flora continuava ali, e que seria a próxima a experimentar a lâmina flamejante de Brodderick. Ela, por sua vez, recusava-se a acreditar que todo o esforço que empregara em sua jornada fora em vão. Deixara para trás todas as pessoas que amava e enfrentara diversos perigos, não estava disposta a permitir que tudo terminasse daquela maneira, justo quando finalmente estava frente a frente com seu único irmão de sangue. Em sua cabeça, ouvia repetidas vezes a voz de seu irmão de criação, Latham, que lhe dizia “Siga seu coração, e ele lhe proverá a força necessária.”
Brodderick contemplou os irmãos Valaskes e se resumiu a dar uma sonora gargalhada.
– Princesa, eu bem poderia poupá-los, para que me concedessem um pouco mais dos prazeres da batalha, mas já estou farto de prolongar a guerra contra um inimigo tão insignificante. É chegado o momento de encerrar este assunto. – Ele caminhou lentamente até Fausto, exibindo um sorriso maligno no rosto. Com um rápido movimento, Brodderick levantou a espada de fogo para o alto, em direção ao céu estrelado, e, com toda a sua força, abaixou-a rapidamente, visando o pescoço do príncipe.
Ao tentar retornar por onde viera, ela viu seu caminho barrado por uma intensa batalha que se desenrolava entre os atacantes que haviam invadido pela masmorra e os poucos defensores que tentavam se reorganizar após o ataque surpresa. Impedida de prosseguir, esgueirou-se pelos salões adjacentes por um longo tempo, até que finalmente alcançou uma entrada para o grande Salão dos Quadros.
Estava pronta para adentrá-lo, quando ouviu vozes. Então recuou, se espremeu no corredor lateral onde estava e se esforçou para ouvir e tentar descobrir quem estava lá dentro, mas ela não conhecia a maioria das vozes que ali se projetavam.
– Alteza, é inútil! Precisamos nos render, ou estaremos condenados! Brodderick Carnell já nos derrotou, a Sala do Trono está repleta de seus soldados. O próximo passo será riscar Amitié do mapa!
– Mas aonde nossa rendição nos levará? De um jeito ou de outro, ele nos matará a todos!
– O que ele realmente deseja é resistência! O único propósito dessa guerra é satisfazer seus caprichos de glória em campo de batalha, e não podemos mais lhe dar esse prazer!
– Calados, todos. – Flora reconheceu a voz de Fausto Valaskes. – Minha esposa já foi levada?
– Sim, Vossa Alteza. Ela conseguiu escapar com seus filhos. Estão se dirigindo à Fortaleza do Gelo, nas Grandes Montanhas.
De onde estava, Flora conseguia ver o vitrais das portas que levavam a uma grande sacada e davam vista à guerra que se desenrolava. As defesas foram ineficazes e a cidade ardia, em inúmeros focos de incêndio que iluminavam a noite. Os poucos guerreiros remanescentes de Hynneldor caíam, um a um, enquanto os simples moradores da cidade eram presos a correntes de ferro e levados, em fila, para servirem como escravos.
– Senhores, este castelo resguarda o último Santuário do Céu. – Fausto voltou a falar. – Por mais que eu saiba que nossa resistência será ínfima, nós precisamos nos arriscar. Brodderick Carnell jamais poupará o santuário, e toda a esperança de Hynneldor depende disso. E é por isso que eu repito: esse santuário só será profanado após a minha morte. Vocês estão comigo?
Flora ouviu inúmeras espadas serem desembainhadas e várias vozes, em uníssono, bradarem um grito de aprovação. No mesmo instante, duas portas duplas, uma em cada extremidade do salão, foram escancaradas ao mesmo tempo. Por uma delas, entrou um batalhão de soldados de Hynneldor. Pela outra, irrompeu um grande número de soldados de Vulcannus.
Homens armados preencheram o salão, e logo começaram a se digladiar. Mas um homem, em especial, chamou mais a atenção de Flora. Brodderick Carnell era alto, forte, usava uma armadura negra imponente e bradava ordens e palavras de incentivo a seus comandados. Mas nada disso realmente importava. O que atraía o olhar de Flora era a cor de sua pele, escarlate, como Flora nunca vira antes.
Por um momento, ela lembrou de sua vida na Ilha de Ashteria. Os sollaris com quem convivera possuíam orelhas pontudas e pele esverdeada. Que saudade! Se Flora queria voltar a ver sua família algum dia, sabia que o primeiro passo seria sobreviver àquela guerra. Mas o homem de pele vermelha era forte, com certeza não era humano e parecia não ter medo da morte.
Um enorme barulho às suas costas arrancou Flora de seus devaneios. Ela olhou para trás a tempo de ver parte do teto ceder, quando o Furioso derrubou uma das vigas de sustentação ao tentar passar por um corredor mais estreito do que ele. Como um animal, passou a correr com as mãos no chão, na direção de Flora, deixando para trás um rastro de destruição.
Sem pensar, Flora invadiu o Salão dos Quadros, permeando os inúmeros guerreiros que se combatiam mutuamente. Ninguém deu atenção à menina que cruzava o salão em disparada, esquivando-se da batalha e buscando, desesperadamente, um lugar para se abrigar. Mas, quando o Furioso surgiu, todos pareceram prender a respiração ao vê- lo. Ele parou abruptamente na entrada do salão, escancarou a bocarra e soltou um longo e grave rugido:
– Matar Valaskes! – E se arremessou em direção a Flora.
– PARE! – Gritou Brodderick Carnell, e o Furioso obedeceu prontamente, parando a poucos centímetros dela.
Brodderick analisou a situação calmamente, estranhando o fato de o Furioso não estar visando o príncipe Fausto. Ele observou todos os presentes e deu um sorriso de escárnio. Flora e Fausto trocaram um olhar significativo, e um alarme soou na cabeça do príncipe quando seu inimigo declarou, triunfante:
– Dois Valaskes de uma só vez? Não poderia ser melhor...
– PROTEJAM A PRINCESA! – Fausto gritou, desesperado.
Tudo aconteceu ao mesmo tempo. Os guardas vieram em socorro, liderados por um valente soldado com espada e escudo. O Furioso atacou com ambas as mãos, atingindo o escudo e partindo-o ao meio, enquanto Flora correu, escondendo-se atrás do grupo de soldados que se deslocavam para protegê-la. Aproveitando a distração, Brodderick Carnell fechou os punhos em torno da bainha de uma espada que não existia, e de suas mãos irrompeu o fogo mágico que se transformou em uma espada sólida e afiada. Então atravessou o salão em um segundo e investiu contra Fausto.
Quando a espada de fogo de Brodderick se chocou contra a espada de metal do príncipe de Hynneldor, um grande estouro se fez, espalhando fagulhas por todo o salão. Os olhos de Fausto lacrimejaram de dor e muitos dos quadros pendurados na parede lateral arderam em chamas. Fausto foi forçado a recuar sob os ataques constantes e poderosos de seu adversário, e, à distância, avistou os guardas que tentavam proteger sua irmã, mas que caíam às dezenas.
Flora voltou a correr, percebendo a inferioridade das forças de Hynneldor. Em poucos minutos, sua defesa fora resumida a um amontoado de figuras agonizantes, e o Furioso continuava avançando, suado, ensanguentado, enquanto derrubava quem quer que estivesse em seu caminho.
– Matar Valaskes.
Quando não sabia mais para onde fugir, Flora abriu uma das portas e saiu para a sacada. Apoiada no parapeito, sentiu o vento frio da noite e viu que a queda até o chão daria uma longa distância. O Furioso se aproximou lentamente, até que a encobriu com sua enorme sombra, e levantou uma das mãos, para dar-lhe o golpe derradeiro. Ofegante, Flora fechou os olhos com força e esperou pelo seu destino, mas nada lhe aconteceu. Quando voltou a abri-los, Dimitri estava dependurado às costas do monstro, com todos os dentes à mostra, enquanto o estrangulava com a corrente que uma vez fora utilizada para unir suas duas espadas gêmeas.
O Furioso se debateu e correu, na tentativa de se livrar do sufocamento, mas o príncipe de Datillion era ágil e determinado. Então, avançou de costas para a parede, para colidir com ela. Dimitri soltou um urro, e por pouco não afrouxou a corrente. O rosto do Furioso estava quase tão vermelho quanto o de Brodderick Carnell, e suas forças começaram a se esvair.
Dimitri fechou a corrente, fincando a adaga nos elos das extremidades, e, antes que o monstro desfalecesse, empurrou-o sacada abaixo. Ele caiu por muitos metros, até atingir o portão de estacas de bronze do pátio do castelo, e seu coração foi trespassado por uma das estacas.
Já muito debilitado, Dimitri sangrava e tinha ossos quebrados. Apoiava-se em Flora quando, juntos, retornaram ao Salão dos Quadros, apenas para encontrar Fausto já derrotado. Dois soldados inimigos seguravam o príncipe de Hynneldor pelos braços, e o jogaram no chão com violência. Ao tentar se levantar, Brodderick Carnell lhe meteu um chute nas costas, que o fez cair novamente e cuspir sangue. Fausto, já sem forças para lutar, apoiou-se no chão e, lentamente, ergueu-se. Apenas para tomar outro chute.
Ao seu redor, dezenas de guerreiros haviam sucumbido, e outros tantos, caídos, apenas aguardavam o encontro com a morte. Apesar de tudo, Fausto estava decidido a morrer em pé, desafiando o inimigo até o fim. Brodderick gargalhava, sentindo prazer com a situação.
– Ora, ora... princesa, ainda está aqui? – Caçoou Brodderick. – Devo informar que de nada serviu toda a sua luta. Você só sobreviveu para assistir à morte de seu irmão. Você, leve-o para fora! – Ordenou a um de seus comandados.
Em instantes, todas as portas foram abertas, e Fausto foi arrastado para a grande sacada. Flora sentia-se impotente diante da situação: seu irmão, forte e audaz, era agora arrastado como se fosse um boneco nas mãos de seus algozes. O que haveria ela de fazer? Com Dimitri debilitado e Nathair tendo-a traído, estava completamente sozinha. Não sabia lutar e não conhecia seus inimigos. Assistir à humilhação do príncipe era uma tortura, e ela desejava, de todo coração, poder afugentar toda aquela tropa e fazer com que a guerra desaparecesse.
Lá embaixo, alguns poucos soldados do reino ainda lutavam, enquanto os moradores tentavam fugir da cidade, para não serem levados a Vulcannus como escravos. Eram todos iluminados pelo brilho quente de grande parte das casas, que eram consumidas pelo fogo.
– Vejam todos! Este será o fim da linhagem real de Hynneldor! – Brodderick projetou sua voz, no intuito de alcançar todos aqueles que ainda estavam em Amitié. Desejava que todos testemunhassem a execução. – Primeiro matarei o príncipe regente, que foi responsável pela decadência deste reino. Em seguida, será a vez da princesa Flora, a princesa perdida, que retornou apenas para presenciar o fim de Hynneldor.
Os soldados de Vulcannus que estavam na sacada forçaram Fausto a se ajoelhar e a curvar seu pescoço. Brodderick Carnel se deleitava com as circunstâncias, e arrancava risadas de escárnio de seus comandados, a cada novo chute que desferia no príncipe derrotado. Não se preocupou em oferecer-lhe uma morte honrada, pelo contrário. Para Brodderick, a derrota era desprezível, digna de degradação.
A cidade inteira parou para assistir, e o som de batalha deu lugar a uma confusa gritaria. As palavras de Brodderick ecoaram por toda Amitié, sendo modificadas à medida que se distanciavam. E o que era “ele vai matar o príncipe e a princesa Flora, que retornou” se tornou apenas “a princesa Flora retornou”.
Após apreciar a inglória do príncipe durante um bom tempo, Brodderick empunhou mais uma vez sua espada mágica. Era chegado o momento de dar o golpe final. Inconscientemente, Flora deu um passo para frente. Dimitri tentou impedi-la, mas ela se desvencilhou dele e pôs-se a caminhar em direção a seu inimigo.
– Pare! – Disse ela.
Todos imediatamente se viraram para ela, inclusive Fausto. O príncipe não demonstrava medo da morte, mas trazia estampado em seu olhar a decepção em saber que Flora continuava ali, e que seria a próxima a experimentar a lâmina flamejante de Brodderick. Ela, por sua vez, recusava-se a acreditar que todo o esforço que empregara em sua jornada fora em vão. Deixara para trás todas as pessoas que amava e enfrentara diversos perigos, não estava disposta a permitir que tudo terminasse daquela maneira, justo quando finalmente estava frente a frente com seu único irmão de sangue. Em sua cabeça, ouvia repetidas vezes a voz de seu irmão de criação, Latham, que lhe dizia “Siga seu coração, e ele lhe proverá a força necessária.”
Brodderick contemplou os irmãos Valaskes e se resumiu a dar uma sonora gargalhada.
– Princesa, eu bem poderia poupá-los, para que me concedessem um pouco mais dos prazeres da batalha, mas já estou farto de prolongar a guerra contra um inimigo tão insignificante. É chegado o momento de encerrar este assunto. – Ele caminhou lentamente até Fausto, exibindo um sorriso maligno no rosto. Com um rápido movimento, Brodderick levantou a espada de fogo para o alto, em direção ao céu estrelado, e, com toda a sua força, abaixou-a rapidamente, visando o pescoço do príncipe.